Monday, 22 October 2007

Adeus


Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.


Eugénio de Andrade

2 comments:

Anonymous said...

Dei este texo quando estava no 10 ano e por acaso nunca o esqueci.
É bastante profundo, fala da maneira como as pessoas gastam as palavras até a ultima, e a maneira como se exprimem para quem os ama.
Quando amamos alguem, tudo parece infinitamente valioso, cada palavra, cada som, cada abraço, tudo.
Mas quando o sentimento passa, tudo volta a "realidade", aquilo que pensavamos ser, ja não o é.
Depois apercebemonos que afinal nao era assim tão perfeito.
Que houve erros, magoas, momentos dificeis.
E finalmente.

Apercebemonos que somos humanos, que a vida contnua, e que depois de um adeus hà um olá. :)

João said...

As palavras gastam-se... mas as memórias ficam. Boas ou más, não interessam. Interessa sim que são o simbolo de um periodo de tempo em que as coisas eram (ou pareciam) melhores. As segundas, pareciam feriados e os dias de inverno eram quentes. Mas o tudo se acaba. Tanto o bom como o mau. A sensação de não ter mais nada para dar... simplesmente horrivel... E o simbolo de que não sobra mesmo nada. Só que o passado não é assim tão inutil quanto isso. Podemos aprender com ele para que da proxima as coisas não se esgotem, criando uma excepção à regra...
Beijinhos do teu admirador (pouco) secreto xD